Tinha acabado de sair de casa da Rita.
Tinha um nó na garganta mas não podia chorar ainda, ia chorar depois de dar a curva. Estacionava na rua seguinte e protegida pela viseira do capacete ia chorar. Talvez a noite encobrisse. Mas não ia chorar perto de ninguém… Os homens podem chorar, as mulheres também mas eu… eu não!
O meu sexto sentido, o que a brincar apelidávamos de “instinto de aranha” como se fosse o Peter Parker não estava funcionar ou ter-me-ia apercebido do matulão que aproximava a mão do meu rabo de cavalo enquanto eu ligava a mota. Só senti o puxão no cabelo e o grito da Rita da janela. Ouvi um som de pássaro, um som de corvo e olhei para a sombra que pairava sobre mim e o “clash do meu capacete no chão.
Acordei, não sei quanto tempo depois, descalça, com o torso envolto em ligaduras. Cheirava a éter e sangue seco. O cheiro de sangue velho invadia-me as narinas e não consegui impedir o vómito. Nem sei onde despojei o conteúdo ácido do meu estomâgo. Levantei-me mais leve e muito mais enojada!
Ouvi um grito de pássaro. Olhei para cima e vi o corvo que debicava frenéticamente as grades. Tentei trepar a parede. Parecia-me demasiado lisa. Magoei os pés e as mãos e a pele das costas ardia-me horrivelmente.
Uma luz surgiu junto ao chão: havia uma porta!
Deitei-me no chão, embrulhei-me no meu próprio corpo e com parte do cabelo a cobrir-me a cara. A pele ardia-me horrivelmente e sem querer as lágrimas começaram a brotar quentes, salgadas e ardentes. A porta abriu-se! Estava destrancada… a porta estava destrancada! Uma sensação de ânimo inundou-me tal como nova náusea… o cheiro era nauseabundo! Alguém entrou. Senti pânico e fechei os olhos com força!
Fiquei imersa e prisioneira de uma letargia desconhecida. Sabia que não estava só… os olhos abriram-se e a boca ficou presa num esgar estranho e salivante. Via movimento mas não senti o corpo, deslizava até que os olhos me foram fechados.
…
Os olhos pesavam e o esforço que fazia para entreabrir as pálpebras era quase heróico.
A sala era branca. Tentei movimentar-me! Não conseguia estava presa numa cama de hospital de barriga para baixo. Sentia as amarras nas mãos presas acima da cabeça. E só pensava que ainda bem que estava de barriga para baixo… assim conseguiria dormir!
E dormi…
Acordei para a luz com o som de bicadas num vidro. Não estava a sonhar. Cheirava éter e a hospital… Continuava sem conseguir movimentar-me!
Acordei novamente com uma névoa junto à janela… era pesada e espessa.
Estava solta. Tinha sido solta.
A Rita estava sentada a perseguir o corvo, acinzentado da névoa, através do vidro da janela.
…
Em, casa a Rita dizia-me que o corvo me tinha trazido de volta…de volta do mundo dos tristes melancólicos e feridos de amor.
Talvez ela tivesse razão e durante meses eu não houvera sido nada mais… mas naquele momento sentia-me dubiamente inteira.
O médico dizia-me que com uma cirurgia plástica a pele das costas voltaria a ser normal. Eu não a queria normal… queria-a assim!
Das minhas costas nuas pintadas num espelho via rasgões que se assemelhavam a duas enormes asas. Se o facto de quase ter sido retalhada para o mercado negro de órgãos me tinha dado asas, quem era eu para as negar?
Asas que não me faziam voar mas me ofereciam um esgar de sorriso cada vez que voava pelas estradas no corcel motorizado.
A realidade era que as minhas asas não me levaram a ver a Rita quando o cancro finalmente a levou. Quando um anjo teve piedade do seu sofrimento e ela partiu deixando saudades.
No dia do seu enterro, parei a mota em frente aos muros caiados de branco daquelas que seriam as paredes que a confinavam. Paredes brancas, que a confinaram toda a sua luta pela vida, que nos confinaram enquanto estive numa cama de hospital. Olhei para ambos os lados da estrada e segui pelos portões enferrujados, que teimavam em não se mover. Estavam a tapá-la com um manto castanho fofo e eu senti urgência em expelir o conteúdo do meu estômago. Pedi desculpa à lage que o escondeu. Mas os mortos não se interessam com o vómito dos vivos. Voavam aves negras pelo cemitério, perguntei-me se alguma seria a “minha”. Quando todos se foram embora deitei-me ao lado da Rita, como ela tantas vezes fez quando eu estava presa à cama com as “asas” a cicatrizar.
Não chorei mas ri em silêncio, com dor sentida e sentido de ausência de tudo o que me recordava. Quando a noite caiu, levantei-me dali e prossegui para mais um voo. Olhei duas vezes e atravessei a estrada. Aproximei-me da mota e olhei novamente, duas vezes… No bar olhei duas vezes antes de me sentar ao balcão. Brindámos à Rita e brindámos a coisas… muitas coisas! Quando sai do bar olhei duas vezes e lá estavas tu… estarias lá de tantas outras vezes que não olhei?
A realidade é que estavas… e desta vez estiveste para sempre independentemente do estatuto.
A Rita partiu até um dia, eu aprendi que existem paredes que não podem ser trepadas, devem ser contornadas ou derrubadas, a olhar duas vezes quando escolhia um caminho e tu apareceste a olhos que aprenderam a ver. A Ver mesmo, nem que para isso fosse preciso ver duas vezes.