

A manhã era solarenga e entre uma baforada e outra de cigarro observava a forma introspectiva como lias o jornal. Decidi que ia dizer-te! Não tinha nada a perder. Dir-to-ia antes que começassem a chegar os amigos para o pequeno – almoço!
- Sonhei connosco no passado! - Disseste tu entre a baforada de um cigarro.
Eu sorri e aquiesci, como se não ligasse nenhuma. Fingi continuar a ler o jornal e sei que exasperaste. A única coisa que ainda nos mantinha presos um ao outro era a forma como conseguia que exasperasses, como um olhar meu te atingia e afectava. Eu sabia disso tal como tu! Nenhum o admitia. Eu assistia pacientemente às tuas conquistas e tu ias moendo a paciência das minhas.
A única evidência de que me tinhas ouvido foi o sorriso e aquela expressão no olhar. De seguida voltaste a esconder-te no jornal. Queria ver-te o rosto! Que mania de me ignorar. Deixei de massajar-te os pés que tinhas colocado cerimoniosamente no meu colo quando chegaste à varanda.
Puxaste-me o dedo do pé!
-Ai! Aí o meu canário, fizeste isso porquê?- e lá levantei os olhos do jornal massajando o dedo. Já sorrias de contente, como se fosses um menino traquina. Apeteceu-me tocar-te o rosto e beijar-te só pela expressão que tinhas no rosto. Puxei-te a madeixa de cabelo teimoso.- Doeu! Gostas que te puxe o cabelo? - Começaste a rir como se fosse o que querias.
Sabia que te tinha provocado alguma emoção que em nada se relacionava com o pé. Ia começar a contar-te a reminiscência. Nunca entendi se não percebias que era sempre o mesmo discurso ou se fingias não perceber. De qualquer maneira comecei e decidi que esta seria a última vez. Seria directo!
E lá começaste a papaguear o sonho. Já sabia o que tinha sido: tinhas sonhado com a primeira vez que nos tínhamos visto no meio da enorme gaiola de canários que tinhas em casa. Não gostava de to ouvir dizer. Descrevias tudo de uma forma de tal forma apaixonada que me sentia naquele tempo e só me apetecia enroscar no teu colo como se fosse uma gatinha querendo mimo. Deixar de combater este sentimento e tombar perdidamente por ti!
-…”Ligar-te a meio da noite! Ficar abraçado a ti até amanhecer! Acordar com o teu cheiro no meu quarto!” –corei. Estava tão absorta nos meus pensamentos que nem me apercebi de que falavas de forma séria.
Ela percebeu. Percebeu, mesmo! Senti-me um miúdo pequeno, feliz, contente… parecia que voava. Conhecia-a e sabia que este modo de reagir só queria dizer uma coisa: Eu tinha acertado exactamente onde queria! Esperei uma resposta. Já estava farto de vê-la com outros homens e de a ver todos os dias sendo um doce para as minhas namoradas e a melhor amiga que tinha.
- O quê? Hã? – e retirei os meus pés do colo dele. Ele olhava para mim entre o amuado e o divertido.
HUM?Mas que resposta era esta? Fugir de novo?
- Vou fazer café que já vi que tens ai companhia! - ele esboçou uma intenção de falar.
Fiquei estupefacto, nem sabia o que dizer-lhe! Mais do que dissera, o quê? Raios até os meus canários gostavam dela!
Levantei-me e tapei-lhe a boca com a minha: - Shiuuuuuu! Acordas a menina lá em cima!
Soube imediatamente que tinha cometido um erro. Não existia pedaço de mim que não estivesse electrizado! - Vá, vai lá acordá-la! Eu faço o café! E desamarra o burro, sei que sonhaste connosco no passado mas eu já nos vi no futuro! – e pisquei-lhe o olho! E o futuro era breve… pelo menos comigo.
- Deve ser por isso que há anos não vestes uma camisa branca!- e levantou-se zangado. - E não trouxe ninguém para casa ontem à noite. Não me esqueci que é Domingo! Vou tomar banho!
Eu li-lhe a verdade nos olhos. Medo! Mas como podia eu mostrar-lhe que o sonho do passado pode ser a promessa do futuro?! Que aprenderíamos ambos a viver uma relação?! Porque tinha eu de começar com a tal da conversa do: adoro mulheres!? A verdade é que me senti conquistado quando ela me respondeu e agi como alguém prestes a perder a liberdade: Como um tonto! E ao longo dos anos continuava a conquistar-me! Sei que não lhe sou indiferente mas ela sabe que é a única que me tira do sério, que me faz tremer até ao âmago! Podia ser que quando chegasse o pessoal… Quando chegasse nada… até lá ela já se tinha recomposto! Decidi voltar à carga. Não conseguia partilhar a casa com ela… assim… apaixonado como um tonto! Sai do duche e nem me dei ao trabalho de me enrolar numa toalha! Desci as escadas a correr com uma camisa branca na mão.
Ele lia-me com mais facilidade que fazia o projecto de uma casa. Era verdade que nunca mais tinha conseguido vestir uma camisa branca, durante meses só usava as dele e quando partilhámos intimidade pela única vez, deixei de as usar. Podia ser amiga dele toda a vida mas sabia que como amante duraria pouco. Mesmo que quisesse, não conseguia proteger-me dele e das coisas que despertava em mim. Perdia a minha identidade… a minha liberdade! Não conseguia entender os ideais de enamoramento e lamechice! Podia estar errada mas…presa era como os canários dele. Ave sem brilho na pena e voo baixo! Lindos cantares em tardes de sol e noites de luar…Mas não era pássaro que voasse alto, cantasse a plenos pulmões!
Ela estava na gaiola no meio dos canários. Como da primeira vez que a vi. Rodeei-a pela cintura e beijei-lhe o pescoço estendendo-lhe a camisa branca.
- Sei que viste o teu futuro mas não viste o nosso! Quem sonha com o nosso passado sou eu, deixa que te mostre como quero que seja o nosso futuro!